Crônica de um golpe frustrado.
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Jorge Rojas.
Estava em Quito para participar de uma reunião preparatória da Conferência Regional Humanitária sobre a proteção de pessoas deslocadas e refugiadas, que se realizará nessa cidade em novembro, quando fui surpreendido pela sublevação de um contingente policial que derivou num golpe de Estado frustrado.
Tudo começou às 8 da manhã no V Regimento da Polícia, onde se amotinaram os policiais para reclamar a revogação de uma Lei de Serviço Civil, aprovada nesta quarta-feira pela Assembléia Legislativa e que elimina alguns privilégios para os uniformizados, como bônus, cestas de natal e prêmios por anos de serviço. O presidente Rafael Correa decidiu ir à unidade policial para tentar um diálogo e explicar que durante seu governo quase triplicou os salários dos oficiais e que melhorou substancialmente e dignificou suas condições de trabalho. Disse que era justo homologar seus ganhos junto do restante dos funcionários da administração.
O presidente não foi ouvido e seu enérgico discurso foi afogado por gritos contrários, seguidos de agressão direta do grupo de policiais amotinados, que lançou gases lacrimogêneos e gás pimenta contra o primeiro mandatário, sua equipe de segurança e acompanhantes. O presidente saiu afetado pelos gases e durante a refrega golpeado em um dos joelhos, recentemente submetido a uma intervenção cirúrgica. Atordoado e sem poder caminhar, foi levado ao hospital da polícia, localizado em frente ao V Regimento.
Este foi o começo de um plano pré-concebido para provocar um vazio de poder e alijar o presidente Correa de suas funções. Quase de forma simultânea ao que ocorria no noroeste de Quito, grupos de cidadãos saíram às ruas a fim de exigir a renúncia do presidente, queimar pneus e convocar a desobediência civil, enquanto unidades subordinadas às Forças Armadas tomavam posse dos aeroportos de Quito e Guayaquil, suspendendo vôos domésticos e o tráfico aéreo internacional do e para o Equador. Ao mesmo tempo, os bancos e parte do comércio fechavam suas portas e um grupo de policiais tentava suspender o sinal dos canais oficiais Gama e ECTV, ao passo que civis da oposição pressionavam emissoras independentes.
No meio da confusão, me dirigi à Assembléia Legislativa, onde um grupo de policiais, liderados pela escolta dos parlamentares, tomava posse do edifício e notificava a 21 membros da coalizão situacionista Aliança País que não podia garantir a segurança deles. Uma das legisladoras foi golpeada pelos agentes encarregados de sua custódia.
Eram dez da manhã e outros agentes da ordem se dedicaram a fazer barricadas com pneus e bloquear as vias de acesso ao local. Sobre as ruas 6 de dezembro e Colón estavam concentrados os policiais, atentos às instruções de quem dirigia a sublevação. Um dos oficiais tinha seu rádio em alto volume para que os demais também escutassem. Me aproximei e pude comprovar as intenções por trás do protesto policial.
"Não digam que o presidente está seqüestrado, digam que a polícia o está protegendo no hospital para nos evitar problemas judiciais, mas não vamos deixá-lo sair até que pague pelo que nos fez". Mais que um protesto por uma reforma na lei dos servidores públicos, tratava-se de um golpe de Estado, promovido pela extrema direita que atiçou os policiais a se sublevarem. É o fascismo do século 21, uma modalidade de golpe de Estado que foi estreada com êxito em Honduras, país em que a Corte Suprema de Justiça se prestou a romper a ordem constitucional.
O que fazer? Por um momento, revivi minha condição de jornalista, da qual estou há muitos anos em retiro forçado. A suspensão da reunião de especialistas sobre o deslocamento e refúgio, entre eles o ex-chanceler colombiano Augusto Ramirez Ocampo, que não pôde viajar, me livrou de responsabilidades. Chamei os colegas de direitos humanos e alguns funcionários da chancelaria e do Ministério do Bem Estar Social para obter mais informações e me pus em contato com jornalistas colombianos, chilenos e com algumas agências internacionais de imprensa.
Não havia claridade sobre a resposta à insubordinação policial, não se falava de golpe e as mensagens eram contraditórias. "Deve-se ir a Plaza Grande, ao Palácio de Carondelet para respaldar o presidente", diziam alguns. "Concentremo-nos na Assembléia Legislativa", diziam outros defensores do governo. O poderoso movimento indígena e os estudantes, contrários ao governo pela Lei das Águas, a extração mineral e a lei de educação superior, não estavam se mobilizando.
Notificado da seqüência dos fatos e informado dos outros que ocorriam no resto do país, o chanceler Ricardo Patiño falou à multidão da sacada da casa presidencial. "A vida do presidente Correa está em perigo, isso é uma tentativa de golpe de Estado, chamamos toda a cidadania ao hospital da polícia, no V Regimento, para defender a revolução cidadã", foram suas palavras. A pé e usando todos os meios de transporte possíveis, iniciou-se uma marcha de diversos setores da cidade até as saias do vulcão Pichincha, sede da sublevação policial e do hospital onde estava seqüestrado o presidente.
Os policiais se entrincheiraram na entrada do hospital com uma poderosa reserva de gases e fortemente armados, alguns de rostos cobertos. Com eles, estavam pessoas vestidas de civis e outros encapuzados que coordenavam a operação.
Os primeiros a chegar exigindo respeito e liberdade ao presidente Rafael Correa foram agredidos, apesar de manifestarem sua intenção pacífica. Não obstante, alguns jovens atacaram violentamente um policial, o que motivou a censura de uma senhora que liderava a marcha evocando o princípio da Não Violência de Mahatma Gandhi.
As agressões aumentaram com o passar das horas, mas também o número de manifestantes que saíram para evitar o golpe. Na cidade se registravam alguns saques e ataques de delinqüentes que aproveitaram a ausência da polícia.
O comandante das Forças Armadas anunciou pleno acatamento à ordem constitucional e chamou os amotinados a depor sua atitude violenta, enquanto as pessoas perguntavam "por que o exército não toma o controle da situação e resgata o presidente?". Os helicópteros militares sobrevoaram a região enquanto alguns ministros tentavam chegar ao hospital para acompanhar o presidente. Um deles, o chanceler Patiño, chegou com uma ferida na cabeça e afetado pelos gases.
Os feridos eram transferidos ao hospital Metropolitano, localizado no setor, e separados por um túnel aéreo do hospital da polícia. Chegavam com ferimentos de bala, afetados pelo gás pimenta ou asfixiados por bombas de gás lacrimogêneo.
A impossibilidade de diálogo e a agressão policial motivaram a decisão de tomar o hospital e resgatar o presidente. Já a revolta, tinha sido conjurada em todo o país, incluída a cidade de Guayaquil, onde resultou muito eficaz o trabalho do vice-presidente Lênin Moreno, qualificado como um leal companheiro de teoria do presidente Correa.
O Grupo de Operações Especiais da Polícia (GOE), que se manteve com o presidente durante a crise e as unidades especializadas do exército entraram no hospital. Foram recebidos a tiros pelos revoltosos, mas a operação foi contundente.
O presidente foi tirado em cadeira de rodas, com máscaras anti-gases e colete à prova de balas, sendo levado imediatamente à sede do governo. Em menos de uma hora, Rafael Correa já estava na tribuna, discursando aos seus entusiastas seguidores na Plaza Grande: o presidente se dirigiu ao país até meia-noite por uma cadeia de rádio e televisão. Condenou o golpe, agradeceu a solidariedade nacional e internacional, disse que "hoje o presidente não claudicou, como fizeram outros tantos covardes", referindo-se a presidentes que como Lucio Gutierrez fugiram do país, e lembrou a decisão que tomou no hospital, de sair dali como presidente de uma nação digna ou sair como cadáver.
À 1h30min da madrugada, se despediu com sua costumeira frase "hasta la victoria siempre". Dessa vez foi sua vitória e do povo equatoriano. Porém, a crise persiste. O ex-presidente da Constituinte Alberto Acosta resumiu em uma frase: "Defender a institucionalidade democrática, abrir o diálogo, mudar o rumo". Por ora, a revolução cidadã segue sua marcha.
Jorge Rojas é Presidente da CODHES (Consultoria para os Direitos Humanos e Deslocamento).
Artigo tirado de Correio da Cidadania, do 01/10/2010.2024 · Fundación Moncho Reboiras para o estudo e a divulgación da realidade social e sindical na Galiza