Compreender a economia mundial: Desequilíbrios globais e desigualdades internas.
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James Petras.
Ao longo dos últimos trinta anos, a expansão económica dos EUA além-mar foi gradualmente eclipsada pela crescente dependência da intervenção militar e pela instalação de bases militares em centenas de sítios. Como a financiarização enfraqueceu a capacidade produtiva dos exportadores de manufacturas dos EUA e os seus esforços para capturar mercados, os decisores políticos estado-unidenses aumentaram a sua confiança na supremacia do poder militar. A canalização de milhares de milhões para gastos militares drenou recursos de esforços para aumentar a competitividade da indústria civil dos EUA e foi um factor importante no declínio da sua fatia dos mercados de exportação. O resultado final da militarização foi uma perda de rendimentos de exportação e o crescimento de défices comerciais.
As profundas crises agora em curso nos principais países capitalistas, especialmente os Estados Unidos, provocaram um debate sobre as causas, consequências e políticas apropriadas para saná-las.
O debate tem revelado uma divisão profunda sobre as causas e curas, com políticos, colunistas e economistas anglo-franco-americanos (AFA) por um lado e os seus congéneres asiáticos-alemães (AA) por outro. Em termos gerais os porta-vozes dos AFA atribuem a culpa das crises a factores externos ou, mais especificamente, apontam o dedo aos excedentes comerciais positivos, sectores exportadores dinâmicos e altas taxas de investimento nos sectores produtivos e aos baixos níveis de consumo nos países AA como a causa dos "desequilíbrios" na economia mundial [1] .
Em contraste, os países AA rejeitam a argumentação referente a práticas externas prejudiciais. Enfatizam eles os "desequilíbrios" internos dentro dos países AFA, os quais enfraqueceram a sua posição internacional, comercial e financeira.
Neste documento vou argumentar que tanto as políticas económicas internas como as estratégias externas de construção de império dos países AFA tem sido a força condutora dos desequilíbrios globais. As diferenças estruturais entre as duas regiões e as diferenças na estrutura de classe e configurações económicas em cada bloco excluem qualquer solução fácil ou imediata. No futuro previsível, ao contrário, o conflito entre potências exportadoras emergentes dinâmicas e o bloco ocidental em declínio é provável que se intensifique, levando a maiores conflitos comerciais e possíveis confrontações militares.
As acusações dos AFA contra os "desequilíbrios" comerciais da China combinam o comércio com o ocidente e as relações de Pequim com o resto do mundo. A China tem comércio equilibrado e mesmo défices comerciais com países asiáticos, africanos, do Médio Oriente e latino-americanos. Além disso, os países AFA têm desequilíbrios comerciais com outras regiões incluindo o Médio Oriente e a Alemanha. Mesmo se os países AFA reduzissem importações da China, é mais provável que outros países asiáticos os substituíssem, incluindo o Vietname, Coreia do Sul, Formosa, Bangladesh e Índia. Os défices comerciais resultantes dos AFA permaneceriam aproximadamente os mesmos.
Os países AFA culpam a divisa "subavaliada" da China e afirmam que as autoridades de Pequim manipulam a taxa de câmbio a fim de depreciar o preço das exportações e vencer competidores (nomeadamente produtores no interior dos AFA). Mas a divisa da China foi reapreciada firmemente em mais de 20% nos últimos cinco anos e os AFA ainda incorrem num défice, o que sugere que os seus produtores internos ainda não foram capazes de competir com os fabricantes chineses [2] . Mais recentemente, escritos dos AFA tem-se queixado acerca das baixas taxas de juro aplicadas pelo governo chinês como um "subsídio" aos seus exportadores. Contudo, as taxas de juro do juro dos AFA estão em zero por cento ou são mesmo negativas, mas em vão. Além disso, os AFA proporcionaram mais de 1,5 milhão de milhões (trillion) em fundos de salvamento e mais de 1,3 mil milhões em despesas de estímulo – um subsídio cinco vezes maior do que o pacote de estímulos da China, sem melhoria das suas balanças comerciais. O que é impressionante, dadas as distribuições sectoriais dos pacotes de estímulo de salvamento-subsídio de cada regime, é que a China recuperou-se plenamente e cresce a 8% em 2009, ao passo que os AFA continuam a chafurdar em território negativo e continuam a incorrer em défices comerciais. Isto aponta para a centralidade de factores internos , nomeadamente os sectores económicos que recebem os subsídios do estado, como eles o investem e consequentemente como as suas decisões afectam as balanças comerciais.
Os AFA acusam o baixo custo de trabalho da China, a sua exploração de trabalhadores, dizendo que isso explica os desequilíbrios comerciais. Mas uma percentagem crescente de exportações da China é baseada em avanços tecnológicos, não em trabalho barato. Isto acontece porque competidores com baixo custo de trabalho estão a emergir na Ásia.
Os AFA queixam-se de que a China super enfatiza a sua estratégia de "exportação" a expensas da produção para o mercado interno. Mas aproximadamente metade das exportações da China para os EUA é fabricada por multinacionais de propriedade estado-unidense que investiram, subcontrataram e co-produziram com parceiros chineses. Por outras palavras, a política interna dos EUA, a desregulamentação de fluxos de capital, facilitou o movimento de saída dos fabricantes dos EUA resultando num declínio da produção local, um aumento em importações e maiores défices comerciais.
Causas internas dos défices comerciais (e da economia mundial desequilibrada)
. A mais óbvia e gritante correlação com o crescimento dos desequilíbrios comerciais dos AFA é o crescimento e a dominância do sector financeiro [3] . A financiarização das economias AFA e o papel dominante dos presidentes executivos da Wall Street nas posições económicas estratégicas do estado é transparente para a massa do povo e foi mesmo reconhecida pela maior parte dos economistas e académicos privados. Os défices comerciais aumentaram na proporção directa do crescimento do poder político e económico do sector financeiro. Em grande parte, isto foi devido à transferência de capital da manufactura para os serviços financeiros, levando ao declínio dos investimentos do sector manufactureiro em estratégias de inovação e administração competitiva. Os altos salários, bónus e retornos rápidos atraíram a maior parte dos pretensos "melhores e mais brilhantes". As licenciaturas MBA [Master in Business Administration] multiplicaram-se ao passo que as licenciaturas em escolas de engineering avançadas diminuíram. Programas de treino avançado para trabalhadores qualificados desapareceram ao passo que o recrutamento de baixa qualificação para vendas a retalho cresceu.
O problema era que os serviços financeiros não podiam substituir os rendimentos de além-mar, os quais antigamente se acumulavam para o país através das vendas de manufacturas. Muito menos nos mercados financeiros altamente regulados da China, Japão, Índia e o resto da Ásia, onde a banca estava subordinada à expansão da manufactura – nomeadamente o financiamento de indústrias visadas por responsáveis do estado. A dominância do capital financeiro e dos sectores relacionados do imobiliário e dos seguros levou a uma estrutura de classe altamente polarizada: nela, banqueiros de investimento bilionários presidiram no topo e um exército de trabalhadores de serviços mal pagos (empregados do retalho, pessoal de limpeza, etc) imigrantes e não sindicalizados a ocuparem a base. Actualmente, as desigualdades de rendimento nos EUA excederam as de qualquer outro país capitalista "avançado". As desigualdades em Manhattan excederam as da Guatemala. A concentração crescente de riqueza foi acompanhada pelo declínio de salários medianos ao logo das últimas três décadas. Em consequência, o poder de compra dos trabalhadores dos EUA está a declinar, reduzindo portanto a procura por bens de qualidade produzidos localmente. Resulta na compra de importações baratas de têxteis, sapatos e outros acessórios. O resultado foi um declínio na poupança local e no investimento interno em manufactura levando a um declínio na competitividade. Além disso, a competição entre prestamistas financeiros promoveu gastos do consumidor e maior endividamento individual num tempo em que as exportações manufactureiras estavam a declinar por falta de investimentos.
A maior parte das firmas manufactureiras transformou-se em corporações financeiras, canalizando fundos de investimento para sectores que não ganham divisas externas. O pior de tudo: na busca de lucros mais altos, os industriais manufactureiros transformaram-se em vendedores comerciais , encerrando fábricas, subcontratando produção na China e outros países asiáticos e importando produtos finais para dentro dos EUA criando os desequilíbrios comerciais . A relocalização em grande escala de multinacionais dos EUA no exterior exacerbou mais uma vez os desequilíbrios comerciais.
O papel chave do estado na criação de desequilíbrios internos que levam ao desequilíbrio global é um resultado da tomada do estado pelo sector financeiro e da desregulamentação de mercados financeiros. O resultado foi a promoção a longo prazo de uma política económica na qual o banco central (o Federal Reserve) e o Tesouro encorajaram o crescimento dos sectores das finanças, imobiliário e seguros em relação ao manufactureiro. A estratégia baseada nas finanças era justificada por um grande exército de académicos e publicitários que falavam de uma economia "pós industrial", ou "de serviços" ou "da informação" como uma "etapa mais alta", ao invés de uma economia perversamente desequilibrada, insustentável e injusta.
A supremacia financeira coincidiu com a crescente militarização da política estrangeira dos EUA. Ao longo dos últimos trinta anos, a expansão económica dos EUA além-mar foi gradualmente eclipsada pela crescente dependência da intervenção militar e pela instalação de bases militares em centenas de sítios. Como a financiarização enfraqueceu a capacidade produtiva dos exportadores de manufacturas dos EUA e os seus esforços para capturar mercados, os decisores políticos estado-unidenses aumentaram a sua confiança na supremacia do poder militar. A canalização de milhares de milhões para gastos militares drenou recursos de esforços para aumentar a competitividade da indústria civil dos EUA e foi um factor importante no declínio da sua fatia dos mercados de exportação. O resultado final da militarização foi uma perda de rendimentos de exportação e o crescimento de défices comerciais.
Se combinarmos os três grandes desequilíbrios internos na economia dos AFA, mas especialmente nos EUA, a financiarização da economia, a militarização da política externa e a concentração de riqueza no topo, poderemos entender melhor porque os EUA têm um défice comercial tão gigantesco e em crescimento.
A estratégia da China orientada para a exportação
A ênfase da China numa estratégia conduzida pela exportação e as resultantes crescentes desigualdades de classe é em grande parte um resultado da composição do estado e da sua estrutura social. Por outras palavras, factores internos são a força condutora da sua busca de excedentes comerciais. O que é irónico é que alguns dos críticos do AFA, que correctamente apontam para os "desequilíbrios" internos na China, fazem vista grossa para problemas semelhantes no Ocidente. Nomeadamente, não fazem qualquer menção à ausência de um plano nacional de saúde nos EUA, ao crescimento de desigualdades e ao poder de compra a declinar maciçamente – mesmo quando apontam para estas deficiências na China. O que os advogados ocidentais de maior bem-estar social na China não discutem é o poder, privilégio e lucros da classe capitalista os quais retardam maior consumo em massa. Muito menos discutem eles a força motora para elevar as condições de vida da classe operária e do campesinato, nomeadamente a luta de classe. Ao invés disso, confiam em apelos tecnocráticos às elites chinesas para maiores gastos sociais.
O estado chinês evoluiu numa máquina poderosa para a fabricação de bens e de bilionários. A China hoje tem o mais alto crescimento, a mais alta taxa de exploração e as maiores desigualdades de classe da Ásia. Aumentar salários para estimular o consumo local significa reduzir lucros, anátema para todos os capitalistas incluindo os chineses. Aumentar gastos públicos na cobertura de saúde universal, especialmente para os 700 milhões de camponeses e trabalhadores rurais sem seguro, significa impostos mais altos sobre os ricos, incluindo as famílias e colegas da elite governante. Em contraste, produzir para mercados de exportação não exige aumentar o pode do consumidor interno, exige ao contrário reduzir salários.
Uma mudança de estratégia conduzida pelo mercado externo para uma de mercado interno exige não apenas uma " mudança na política " como uma mudança profunda no poder de classe , da actual classe capitalista e dos seus apoiantes do estado para os trabalhadores e camponeses. Assumir compromissos a longo prazo e em grande escala de rendimentos públicos para serviços sociais destinados aos pobres rurais e a salários mais altos para trabalhadores explorados exige mobilizações populares sustentadas, levantamentos, greves para garantir aos sindicatos e associações camponesas independentes uma mudança de benefícios do estado para o consumo interno.
Os "desequilíbrios" da China são em grande medida internos , sociais e políticos. Um desequilíbrio de poder social entre um estado capitalista todo-poderoso e uma massa de trabalhadores e camponeses reprimida e indefesa; um desequilíbrio de rendimento entre banca, imobiliário e elite manufactureira exportadora super-ricos e uma classe operária com baixos pagamentos e um campesinato de subsistência; um desequilíbrio entre um estado altamente organizado ligado por família, ideologia e interesses económicos à classe capitalista e uma massa de povo trabalhador dispersa, fragmentada e isolada.
A classe dominante da China – seus investimentos externos de mil milhões de dólares em empresas capitalistas ocidentais através dos seus fundos de riqueza soberana, os seus investimentos de mil milhões de dólares em empresas extractivas além-mar – é guiada pela massa de capital acumulado que é extraída através de níveis intensos de exploração do trabalho e da eliminação de pensões, planos de saúde e educação financiados pelo estado. O papel da China como uma potência imperial emergente está enraizado no desequilíbrio entre poder global e decadência do bem-estar social.
O facto de que no ocidente capitalista escritores, decisores políticos e os seus seguidores no campo académico apontem para os mesmos desequilíbrios sociais na China da sua classe operária interna não deveria obscurecer um ponto básico. Os críticos da Wall Street estão a defender a elite financeira AFA contra a maior produtividade dos industriais de exportação da China; enquanto os críticos da classe operária interna estão a criticar os capitalistas e o estado pelas suas altas taxas de exploração e de concentração da riqueza.
A chave para reduzir os desequilíbrios no comércio mundial é reduzir as desigualdades sócio-económicas dentro de cada região. Os EUA exigem uma mudança profunda de uma economia dominada pelas finanças para uma economia manufactureira, em que as finanças, a alta tecnologia e a educação superior sejam dirigidas para a criação de uma economia produtiva competitiva baseada no trabalho qualificado. A ligação no topo entre a Wall Street e o Pentágono deve ser substituída por uma ligação a partir de baixo entre a classe operária industrial, os trabalhadores mal pagos dos serviços, os empregados do sector público e os profissionais.
A transformação estrutural da economia dos EUA é necessária mas não suficiente. Se os esforços dos EUA para perseguir um império orientado pelo poder militar persistirem, isto desviará recursos para longe das prioridades económicas internas e externas. Impérios conduzidos pelo poder militar alienam parceiros comerciais, têm altos custos e baixos retornos, isolam investidores e comerciantes de parceiros produtivos e são destrutivos de instalações civis produtivas internas e além-mar.
Para os EUA, a saída dos desequilíbrios maciços é empenhar-se em transformações estruturais internas em grande escala e a longo prazo – nomeadamente a desfinanciarização e a desmilitarização. Mas as forças políticas e económicas que se beneficiam da configuração actual estão profundamente entrincheiradas, no controle de ambos os partidos principais e dominam os mass media e as suas mensagens. Mas, apesar do seu profundo poder institucional, elas sofrem vários viéses fatais. Em primeiro lugar, elas criaram desequilíbrios globais insustentáveis, os quais mais cedo ou mais tarde levarão a um colapso do dólar e a bolhas financeiras renovadas, mais virulentas e custosas. Em segundo lugar, o mercado livre, que é a principal escora ideológica da elite do poder financeiro desregulamentado, está totalmente desacreditado como se evidencia pelo número de um único dígito de apoio e confiança na Wall Street. Em terceiro, a construção do império conduzida pelo poder militar tem feito o seu curso: após nove anos de guerra no Afeganistão a vasta maioria do público dos EUA enviou uma mensagem à elite política de ambos os partidos, a Casa Branca e o Congresso, de que já é tempo de comutar do financiamento a aventuras fracassadas além-mar para a resolução do problema de 20% de subempregados e desempregados americanos (30 milhões), os 100 milhões ou 33% dos americanos sem nenhuma cobertura de saúde ou com cobertura custosa e inadequada. Nenhuma quantidade de textos dos media transformando a China em saco de pancadas dos nosso próprios "desequilíbrios" auto-induzidos pode desviar a opinião pública americana das suas experiências directas com os nossos próprios fracassos políticos e desigualdades.
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Notas
1- Martin Wolf "Why China must do more to rebalance its economy" Financial Times, September 23, 2009, p 11. Ver também Financial Times October 3, 4, 2009. p 3 e Financial Times September 21, 2009 p 9.
2- Financial Times, October 9, 2009 p 1.
3- Gerald Davis Managed by the Markets: How Finance Re-Shaped America (New York: Oxford University Press 2009).
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[Artigo tirado do sitio web portugués ‘Resistir.info’, do 20 de outubro de 2009]
James Petras (nado en 1937) é profesor emérito de socioloxía na Universidade de Binghamton, Nova York. Traballou co Movemento dos traballadores sen terra do Brasil e co Movemento dos parados da Arxentina. É autor de diversos libros, entre os que salientan: The Power of Israel in the United States (2006), Social Movements and State Power: Argentina, Brazil, Bolivia, Ecuador, con Henry Veltmeyer (2005) eGlobalization Unmasked: Imperialism in the 21st Century, con Henry Veltmeyer (2001).
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